Nunca votei no PT. Participei das passeatas a favor do impeachment de Dilma Rousseff, revoltei-me com o mensalão e o petrolão e não tenho afinidade ideológica com o partido. Apesar desse histórico, em outubro votarei com tranquilidade em Lula, no primeiro turno. A escolha é fácil. Explico-me.
A primeira função de governos é zelar pela vida das pessoas. Na formulação clássica de Thomas Hobbes, a vida em um estado natural, sem organização política, é “pobre, sórdida, brutal e curta”. Nossos líderes devem se esforçar para que não padeçamos de mortes evitáveis ou sofrimentos desnecessários. Além de garantir a nossa integridade física, eles precisam se empenhar pela sobrevivência do corpo político que nos preserva.
Bolsonaro vai contra tudo isso. Ele é um entusiasta da morte, da violência. É um destruidor de todas as instituições que importam para o nosso futuro: das nossas florestas às nossas escolas, passando pela nossa cultura e desaguando nos próprios pilares da democracia, que ele continuamente achincalha, como o Judiciário, a imprensa livre e o processo eleitoral (que o elegeu!).
Esse desdém pelo outro, claro durante a sua carreira, foi escancarado durante a pandemia. Nosso presidente fez troça da “gripezinha”, insistiu para que as pessoas tocassem as suas vidas sem máscaras. Quando o tratamento veio, Bolsonaro, que não é Messias, nos deixou para trás no recebimento de vacinas.
Teve chance de se redimir na vacinação das crianças; de novo, boicotou o esforço. Nem com os nossos pequenos ele se enternece. Os resultados estão aí: quase 700 mil mortos, o 14º país com mais mortes per capita no mundo, quase quatro vezes maior do que a média mundial.
Poderia me estender na longa lista de crimes e patacoadas perpetrados por Bolsonaro para justificar a decisão de não votar nele, mas é desnecessário. Deveria bastar o descaso com a vida alheia para que qualquer político fosse banido. O que requer explicação são aquelas pessoas que ainda pensam em apoiar esse celerado depois de quatro anos de catástrofes em série. Tenho ouvido três explicações/argumentos.
O primeiro grupo de bolsonaristas se identifica com os seus “valores”. As aspas são merecidas: Bolsonaro não é um bom cristão (você consegue imaginar Jesus ou o papa fazendo arminha com a mão e pedindo para enlutados pararem com o ‘mimimi’?) nem um liberal (é preciso ler livros para defender uma ideologia, e ninguém há de acusar o mito de já ter dado essa fraquejada).
Se você acredita que Bolsonaro compartilha os seus valores, ou você está se enganando sobre quem você é, ou está sendo enganado sobre quem ele é.
O segundo grupo é o daqueles com ojeriza à corrupção e que acredita que o governo Bolsonaro é honesto. A aparência de seriedade, porém, é mais fruto da supressão das instituições investigativas do que de uma possível conversão do centrão.
De resto, a ausência de prisões até agora se deve ao fato de que a corrupção foi legalizada. Em um verdadeiro golpe de mestre do patrimonialismo, o que era mensalão virou orçamento secreto.
Por último, há o grupo que quer barrar o PT por receio de sua sanha gastadora, que faria o país degringolar até virar a próxima Venezuela. Vai que os petistas decidem declarar estado de emergência só para poder furar o teto de gastos e aprovar despesas eleitoreiras a poucas semanas do pleito, não é mesmo?
Lula na Presidência está longe de ser meu cenário ideal. Em uma eleição normal, a gente escolhe o capitão que vai levar o barco para o porto de destino que desejamos. Mas esta não é uma eleição normal. A escolha é entre aquele que nos fará chegar a um lugar indesejado versus um piromaníaco que está tacando fogo no navio.
Os eventuais erros do governo petista podem ser sanados na gestão seguinte. Todavia, mais quatro anos de Bolsonaro devem gerar uma destruição em tantas áreas que perderemos uma geração.
Nas últimas eleições, eu anulei meu voto. Ambas as candidaturas me pareciam inapoiáveis. Em retrospecto, vejo que errei. E não repetirei o erro. Entre a esquerda e a direita, escolherei a vida e a democracia.
Artigo do economista Gustavo Ioschpe, publicado na Folha de S. Paulo